Fernando Pessoa e seus heterônimos.

Olá gente!!


Hoje eu vim falar sobre um assunto muito interessante para a literatura brasileira, os famosos heterônimos de Fernando Pessoa. Já falei muito de Pessoa aqui, postei muitos poemas, mas antes de conhece-lo me confundia um pouco, por que meus professores diziam o nome de outro autor e depois atribuía a ele. Depois quando comecei a lê-lo entendi que genial ele era. 

 O autor, entre muitos outros, criou principalmente 3 heterônimos ( Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro) e 1 semi-heterônimo ( Bernardo Soares) para os quais escrevia toda a história de vida e personalidade, até pequenos detalhes.


Álvaro de Campos

Entre todos os heterônimos, Campos foi o único a manifestar fases poéticas diferentes ao longo de sua obra. Era um engenheiro de educação inglesa e origem portuguesa, mas sempre com a sensação de ser um estrangeiro em qualquer parte do mundo.
 Começa com a sua trajetória como um decadentista, mas logo adere ao futurismo. Após uma série de desilusões com a existência, assuma uma veia niilista, expressa naquele que é considerado um dos poemas mais conhecidos  da língua portuguesa " Tabacaria". É revoltado, livre, triste e crítico ao mundo moderno.

1.     Não sou nada.
        Nunca serei nada.
        Não posso querer ser nada.
        À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.


5.      Janelas do meu quarto,
        Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
        (E se soubessem quem é, o que saberiam?),
        Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
        Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
10.   Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
        Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres
        Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens.
        Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
        Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
15.   Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
        E não tivesse mais irmandade com as coisas
        Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
        A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
        De dentro da minha cabeça,
20.   E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.


        Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
        Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
        À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
        E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.


25.   Falhei em tudo.
        Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
        A aprendizagem que me deram,
        Desci dela pela janela das traseiras da casa.
        Fui até ao campo com grandes propósitos.
30.  Mas lá encontrei só ervas e árvores,
        E quando havia gente era igual à outra.
        Saio da janela, sento-me numa cadeira.
        Em que hei de pensar?


        Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
35.   Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
        E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
        Gênio? Neste momento
        Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu ,


        E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
40.   Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
        Não, não creio em mim.
        Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
        Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
        Não, nem em mim...
45.   Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo.
        Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando.
        Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
        Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
        E quem sabe se realizáveis,
50.   Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
        0 mundo é para quem nasce para o conquistar
        E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
       Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
        Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
55.   Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
        Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
        Ainda que não more nela;
        Serei sempre o que não nasceu para isso;
        Serei sempre só o que tinha qualidades;
60.   Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
        E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
        E ouviu a voz de Deus num paço tapado.
        Crer em mim? Não, nem em nada.
        Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
65.   0 seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
        E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
        Escravos cardíacos das estrelas,
        Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
        Mas acordamos e ele é opaco,
70.   Levantamo-nos e ele é alheio,
        Saímos de casa e ele é a terra inteira,
        Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.


        (Come chocolates, pequena; Come chocolates!
        Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
75.   Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
        Come, pequena suja, come!
        Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
        Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
        Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
80.   Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
        A caligrafia rápida destes versos,
        Pórtico partido para o Impossível.
        Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
        Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
85.   A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
        E fico em casa sem camisa.


        (Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
        Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
        Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
90.   Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
        Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
        Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
        Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -,
        Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
95.   Meu coração é um balde despejado.
        Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
        A mim mesmo e não encontro nada.
        Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
        Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
100. Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
        Vejo os cães que também existem,
        E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
        E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
        Vivi, estudei, amei, e até cri,
105. E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
        Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
        E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
        (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
        Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
110. E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.


        Fiz de mim o que não soube,
        E o que podia fazer de mim não o fiz.
        0 dominó que vesti era errado.
        Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
115. Quando quis tirar a máscara,
        Estava pegada à cara.
        Quando a tirei e me vi ao espelho, Já tinha envelhecido.
        Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
        Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
120. Como um cão tolerado pela gerência Por ser inofensivo
        E vou escrever esta história para provar que sou sublime.


        Essência musical dos meus versos inúteis,
        Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse
        E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
125. Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
        Como um tapete em que um bêbado tropeça
        Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.


        Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
        Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
130. E com o desconforto da alma mal-entendendo.
        Ele morrerá e eu morrerei.
        Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos.
        A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
        Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
135. E a língua em que foram escritos os versos.
        Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
        Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
        Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
        Sempre uma coisa defronte da outra, Sempre uma coisa tão inútil como a outra ,
140. Sempre o impossível tão estúpido como o real,
        Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
        Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
        Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
        E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
145. Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
        E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.


        Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
        E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
        Sigo o fumo como uma rota própria,
150. E gozo, num momento sensitivo e competente,
        A libertação de todas as especulações
        E a consciência de que a metafísica é uma conseqüência de estar mal disposto.


        Depois deito-me para trás na cadeira
        E continuo fumando.
155. Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.


        (Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
        Talvez fosse feliz.)
        Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou á janela.


        0 homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
160. Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
        (0 Dono da Tabacaria chegou á porta.)
        Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
        Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
         Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da tabacaria sorriu.

O heterônimo Ricardo Reis é descrito como um médico que se definia como latinista e monárquico. De certa maneira, simboliza a herança clássica na literatura ocidental, expressa na simetria, na harmonia e num certo bucolismo. O fim inexorável de todos os seres vivos é uma constante na sua obra, clássica, depurada e disciplinada. Faz uso da mitologia não-cristã.
Segundo Pessoa, Reis mudou-se para o Brasil em protesto à proclamação da República em Portugal e não se sabe o ano da sua morte.
Em O ano da morte de Ricardo Reis, José Saramago continua, numa perspectiva pessoal, o universo deste heterônimo após a morte de Fernando Pessoa, cujo fantasma estabelece um diálogo com o seu heterónimo, sobrevivente ao criador.

Alberto Caeiro

Por sua vez, Caeiro, nascido em Lisboa, teria vivido quase toda a vida como camponês, quase sem estudos formais. Teve apenas a instrução primária, mas é considerado o mestre entre os heterônimos (pelo ortônimo). Depois da morte do pai e da mãe, permaneceu em casa com uma tia-avó, vivendo de modestos rendimentos e morreu de tuberculose. Também é conhecido como o poeta-filósofo, mas rejeitava este título e pregava uma "não-filosofia". Acreditava que os seres simplesmente são, e nada mais: irritava-se com a metafísica e qualquer tipo de simbologia para a vida.
Os escritos pessoanos, conferem a Alberto Caeiro um papel quase místico, enquanto poeta e pensador.
Dos principais heterônimos de Fernando Pessoa, Caeiro foi o único a não escrever em prosa. Alegava que somente a poesia seria capaz de dar conta da realidade.
Possuía uma linguagem estética direta, concreta e simples mas, ainda assim, bastante complexa do ponto de vista reflexivo. O seu ideário resume-se no verso Há metafísica bastante em não pensar em nada. A sua obra está agrupada na coletânea Poemas Completos de Alberto Caeiro.

Bernardo Soares

Bernardo Soares é, dentro da ficção de seu próprio Livro do Desassossego, um simples ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Conheceu Fernando Pessoa numa pequena casa de pasto frequentada por ambos. Foi aí que Bernardo deu a ler a Fernando seu livro, que, mesmo escrito em forma de fragmentos, é considerado uma das obras fundadoras da ficção portuguesa no século XX.
Bernardo Soares é muitas vezes considerado um semi-heterónimo porque, como seu próprio criador explica:
"Não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afectividade."
A instância da ficção que se desenvolve no livro é insignificante, porque trata-se de uma "autobiografia sem factos", como o próprio Fernando Pessoa situa o livro. Dessa forma, o que interessa em sua prosa fragmentária é a dramaticidade das reflexões humanas que vêm à tona na insistência de uma escrita que se reconhece inviável, inútil e imperfeita, à beira do tédio, do trágico e da indiferença estética. O fato de Fernando Pessoa considerar (em cartas e anotações pessoais) Bernardo Soares um semi-heterônimo faz pensar na maior proximidade de temperamento entre Pessoa e Soares. Nesse sentido, para alguns, o jogo heteronímico ganha em complexidade e Pessoa logra o êxito da construção de si mesmo como o mais instigante mito literário português na Modernidade.

Esses heterônimos são geniais, o mais legal, é saber que todos são partes do poeta, mesmo sendo diferentes, são vários lados de um só ser. Pessoa é gênio.



Nenhum comentário :

Postar um comentário